No dia 24 de janeiro de 1835, Salvador, a antiga capital do Brasil, foi palco de uma das mais importantes rebeliões urbanas de escravizados no país
No dia 24 de janeiro de 1835, Salvador, a antiga capital do Brasil, foi palco de uma das mais importantes rebeliões urbanas de escravizados no país: a Revolta dos Malês. Durante mais de três horas, trabalhadores africanos escravizados enfrentaram civis e soldados coloniais, deixando um legado de resistência que atravessa os séculos.
O Contexto e os Números do Levante
Comandada principalmente por africanos muçulmanos, conhecidos como malês, a revolta reuniu cerca de 600 participantes. Proporcionalmente, isso equivaleria a 12 mil pessoas, considerando a população atual de Salvador. Segundo o historiador baiano João José Reis, o movimento resultou na morte de mais de 70 africanos e na punição de aproximadamente 500, que enfrentaram penas de morte, açoites, prisão ou deportação.
À época, Salvador tinha cerca de 65,5 mil habitantes, sendo 42% escravizados e 29,8% negros ou pardos livres, enquanto os brancos compunham 28,8% da população.
A revolta foi planejada nos mínimos detalhes. Grupos secretos se organizavam em diversos pontos da cidade, incluindo clubes clandestinos como o da Barra da Vitória, conforme detalhou o sociólogo Clóvis Moura. Até mesmo um fundo financeiro foi criado para sustentar as ações dos rebeldes.
Os Objetivos e o Desfecho
A rebelião tinha como plano inicial eclodir em Salvador e depois se expandir para os engenhos, epicentro da escravidão na Bahia. Contudo, uma denúncia forçou os líderes a anteciparem o levante para o dia 24 de janeiro, antes do fim do Ramadã, data originalmente escolhida para marcar a insurreição.
Vestidos com roupas típicas muçulmanas, os malês percorreram as ruas de Salvador em combates intensos, mas foram derrotados pela superioridade numérica e bélica das forças coloniais. Entre os líderes estavam nomes como Pacífico Licutã, Ahuna, o liberto Belchior da Silva Cunha, além de Lupis Sanim e Manuel Calafete.
Um Legado de Resistência
Apesar do fim violento, a Revolta dos Malês deixou marcas profundas na história brasileira. Considerada por especialistas como o maior levante de escravos urbanos das Américas, ela revelou a força organizacional e a consciência política dos africanos escravizados.
Os estudos de Clóvis Moura apontam que revoltas como a dos Malês desgastaram o sistema escravista em diversos aspectos, aumentando o medo entre as elites. O exemplo do Haiti, que conquistou sua independência em 1804 após uma revolução liderada por escravizados, era frequentemente citado pelas autoridades brasileiras como um alerta.
A Memória dos Malês Hoje
A revolta segue sendo lembrada em diversas manifestações culturais. Em 1979, foi criado o bloco afro Malê Debalê, que homenageia os combatentes de 1835. Já na literatura, o clássico Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves, narra a trajetória de Kehinde, uma personagem que viveu os acontecimentos do levante.
No cinema, o longa-metragem Malês, dirigido por Antônio Pitanga, estreou no final de 2024 e trouxe novos olhares sobre o episódio histórico. Enquanto isso, a exposição Eco Malês, em cartaz na Casa das Histórias de Salvador até maio de 2025, reúne 114 obras de 48 artistas que exploram as influências contemporâneas da revolta.
Para o curador da exposição, João Victor Guimarães, a revolta simboliza a luta coletiva por um objetivo comum. Ele ressalta que os malês, embora inicialmente planejassem converter todos os negros ao islamismo, cederam em alguns pontos e buscaram alianças com irmandades cristãs e terreiros de Candomblé.
Reflexões Sobre a Revolta
A Revolta dos Malês não foi apenas um levante, mas um marco de resistência que expôs as tensões do sistema escravista e revelou a organização e coragem dos africanos escravizados. Dois séculos depois, ela continua inspirando estudos, manifestações culturais e debates sobre o passado e o futuro do Brasil.
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